Ainda existe muito a ser feito para finalmente derrotarmos o racismo, mas estamos mais próximos do que jamais estivemos e não podemos desanimar ou nos acomodar agora. Muitos "não brancos", principalmente os negros, sentem que não são percebidos como iguais pelos seus concidadãos; sentem que o branco é preferido em muitos aspectos e que concorre de forma desigual ao acesso a bens, tanto materiais (emprego, educação, etc.) quanto simbólicos (psicológico/psicossocial: estética, intelectualidade, etc.). Muitos de nós sentem essa desigualdade por experiência própria, mas não conseguem entender o que ela é e por que acontece. Na minha experiência pessoal, sentia que havia algo de errado, mas não entendia exatamente o que. Desde a infância, sentia que havia algo de indesejável em relação a minha pele, embora ninguém (até onde lembro) jamais tenha dito que minha pele fosse feia; pelo contrário, sempre que, na minha reveladora inocência infantil, dizia aos meus pais que queria ser branco, eles falavam que minha cor era bonita. Contudo, isto acontecia porque eu havia sido ensinado a desprezar a minha cor como inferior à brancura. "Mas como você foi ensinado?", alguém pode perguntar. "Você não acabou de dizer que ninguém nunca disse que sua pele era feia?" Bem, embora ninguém jamais houvesse aberto a boca para pronunciar estas palavras, eu sentia isto intuitivamente. É verdadeiro o ditado: "uma imagem vale mais que mil palavras", e as imagens às quais estava exposto me ensinaram, de maneira subliminar, que o negro era inferior ao branco, que era menos desejável e até feio; nenhum pai pode superar o poder esmagador das imagens e da cultura.
O fenótipo negro é geralmente associado à pobreza, feiura e inferioridade intelectual.
Eu não compreendia isto porque fui ensinado que no Brasil não havia racismo de verdade e que, quando havia, era manifestado de forma explícita através de xingamentos e agressões. Tudo mudou quando finalmente entendi que o racismo é um sistema: um conjunto de crenças (ideologia) e práticas que privilegiam um grupo, socialmente dominante. Como DiAngelo disse, enquanto tratarmos o racismo "como atos individuais feitos por indivíduos maus, não poderemos confrontá-lo". Como Bonilla-Silva apontou no seu livro "Racism Without Racists" ("Racismo Sem Racistas"), o racismo é sustentado, entre outras coisas, pela noção de raça e pelas estruturas raciais. A noção de que pertencemos a raças diferentes é um construto social, sem nenhuma validade biológica. Contudo, o fator racial continua a afetar nossas vidas por que ainda nos percebemos como pertencentes a grupos distintos um do outro devido a características físicas*. As estruturas raciais dizem respeito às condições materiais deste sistema: brancos como a força dominante, economica e intelectualmente, enquanto os outros grupos ocupam papéis sociais inferiores. Por exemplo, se uma empresa tem 200 funcionários num bairro onde 60% da população é negra, mas apenas 10% dos funcionários são negros, configura-se aí um caso de discriminação racial. O dono da empresa não precisa ser um racista declarado para que isto aconteça. "Mas talvez não houvesse negros qualificados para o trabalho!", alguém pode argumentar, mas ao dizer isto, já fica implícito que há uma desigualdade no acesso a esta qualificação.
Os estereótipos negativos devem ser combatidos com imagens que promovam a beleza, humanidade, igualdade, história e dignidade dos negros
A razão pela qual o racismo se mantém é muito simples: ele beneficia ao grupo socialmente dominante. Com o fim das estruturas raciais, brancos e negros concorreriam de forma igual aos mesmos bens materiais e simbólicos. Aqui é importante entender o que é chamado na literatura de "medo branco": o medo, por parte do grupo dominante, constituído por uma maioria branca, de que outros ocupem os seus postos, ou seja, o medo de ter que compartilhar o poder e, portanto, de reduzi-lo ou perdê-lo. É por esta razão que é preciso que haja um empoderamento socioeconômico do povo negro. É também por esta razão que muitos se opõe a cotas raciais (brancos e negros dividindo o mesmo espaço, de forma não hierarquizada). Por causa destas estruturas raciais, estamos vivendo tempos urgentes. A juventude negra está sendo assassinada antes mesmo de ter uma chance de fazer a diferença. A situação é urgente. Estamos tão perto agora. Não podemos recuar. Temos que seguir em frente. Mais um pouco e derrubaremos a supremacia branca. O racismo se tornou um assunto muito delicado, mas precisamos falar sobre racismo. Temos que conscientizar a todos, especialmente o negro, pois o negro, quando não consciente da sua condição, pode ser uma ferramenta nas mãos do sistema opressor. É preciso, contudo, ressaltar que o racismo é um sistema e, como sistema, não é necessário que todos os indivíduos brancos (o grupo dominante e os beneficiários deste sistema) sejam racistas. O branco se privilegia deste sistema, seja ele racista ou não. Não é uma escolha individual. Embora muitos brancos não se preocupem com a questão racial (por ser algo que não os afeta diretamente), existem brancos conscientes a respeito do problema (como Elisa Larkin Nascimento, Peggy McIntosh, Robin DiAngelo, Tim Wise, entre outros). É preciso entender, contudo, que o racismo tem efeitos negativos sobre todos, pois contribui para a desarmonia social. Outra razão pela qual o branco muitas vezes deixa de participar ativamente do debate racial é que ele pode sofrer o peso da discriminação racial ao se aliar a negros e ele, tendo uma escolha que os negros não têm, a liberdade de optar ou não por fazer parte desta luta - os negros entram no campo de batalha ao nascer - optam por não carregar um fardo que não é seu. Os negros muitas vezes se calam em relação ao racismo a fim de evitar tensões interpessoais. Contudo, quando se fala em derrubar a supremacia branca, o que se pretende não é substitui-la por uma supremacia negra, mas por um sistema igualitário. Estamos lutando para sermos vistos como seres humanos completos, para não sermos mais o "outro" (como se o europeu fosse a norma ou modelo de humanidade). Estamos lutando contra uma ameaça à nossa liberdade e nossa dignidade, pois o racismo restringe as nossas opções, oportunidades e livre arbítrio. Apesar das conquistas, temos que lutar, pois um sistema só é derrubado através de algum tipo de revolução: seja ela gradual ou instantânea, pacífica ou não, mas nunca passiva. Então, lutemos!
* Embora anseie pelo dia em que já não teremos de nos classificar racialmente, a classificação racial na atualidade é necessária para levantamento de dados em relação à desigualdade racial. Quando houver real igualdade, ela já não será necessária.